FILHOS DE CAIM
“Ouve a minha voz...
escutai as minhas palavras: eu matei
um homem...
e um adolescente... Caim será vingado sete vezes,
mas...serei setenta vezes sete”.
Do
Livro do Gênesis
Como sempre logo ao escurecer reuniam-se
os quatro irmãos ao redor da mesa de jantar e servidos pelo empregado da casa
comiam em silêncio. Após a refeição e retirados da mesa os pratos ainda por
alguns momentos permaneciam ali reunidos.
No geral era sempre assim: ao anoitecer
quando desocupados cada um de seus deleites diurnos deparavam-se de frente uns
com os outros na hora do jantar.
Ocupavam o velho casarão que pertencera a
seus antepassados. E órfãos que eram convivam já há longo tempo enclausurados
naquela casa e restritos a seus hábitos na certa senão excêntricos, extravagantes. Qualquer um que contato tivesse com aquele
quarteto por assim dizer, haveria de repudiar sua conduta nada sociável. Há tempos permaneciam naquele ambiente
obscuro e sombrio. E não fosse o aspecto irregular de seus hábitos, como dito
incomuns, talvez houvesse ainda um meio de se deslocarem de ambiente tão
vicioso. Tão sobrecarregado de laços que,
se num aspecto os unia, por outro
fazia de cada um deles um fantasma em
potencial.
Houve conhecidos que por algum tempo
buscaram proximidade, tentaram mesmo alegrar o ambiente que pela resistência
dos quatro em acatar qualquer princípio de amizade findaram se afastando.
E o mórbido e voraz caráter de cada um era
o divisor comum daqueles quatro irmãos certamente desafortunados de qualquer
tipo de real nobreza de alma. E isso na verdade desde crianças. O que
inviabilizava uma possibilidade equitativa de comportamento sadio. Eram então agora
três rapazes e uma moça que em potencial na certa se enfrentariam, na disputa e
soberba, características de cada um; se tentassem persuadir uns aos outros numa
possível mudança de comportamento, ou ainda simplesmente aliarem-se num mesmo
propósito, diverso daquele que os unia.
Compactuados eram num procedimento que os
tornava cúmplices uns dos outros.
Terminado o jantar naquela noite de
domingo Norberto o mais velho dos quatro
levanta-se da mesa e anuncia com voz firme:
- Meus
queridos irmãos, estou de saída. Esta
noite a missão é minha, já vou indo até mais.
- Até Norberto – foi a resposta da boca
de alguns.
Já as trevas reinavam densas quando
Norberto atravessou o umbral do sombrio casarão. Passou a chave no cadeado do
portão após sair, bem como certificou-se pondo a mão na cintura se não deixava para trás sua faca de caça idêntica a de cada um dos outros quatro irmãos
.
Tomou o rumo esquerdo da calçada e a
passos vagarosos caminhou por vários minutos displicentemente estacando somente
a certa altura devido a um barulho que lhe veio aos ouvidos de passos a se
aproximarem.
Buscou refugiar-se nas sombras o mais que
pode e permitiu assim que o transeunte que seguia na mesma calçada que a sua, passasse por ele sem se quer notá-lo.
Aguardou alguns segundos e pôs-se a seguir
o estranho que virando as costas e dando conta de que era seguido apertou o passo. Norberto foi mais ligeiro e
atacando o estranho pelas costas, corta-lhe a garganta com sua faca, arrebatando do sujeito em seguida seus valores
pessoais.
Usando luvas retirou Norberto do bolso do
casaco um pedaço de pano e limpou a lâmina da arma embolsando em seguida de
volta o pedaço de tecido manchado de sangue.
Sem demonstrar qualquer temor ou alteração
de humor. Deu as costas e rumou de regresso ao antro que lhe servia por lar. Lá
chegando procurou como sempre fazer silêncio para não incomodar o sono dos
demais. Caminhou rumo ao cofre atrás de um dos quadros da sala e introduziu
nele o fruto do latrocínio. Em seguida foi até o porão e atirou o tecido
ensanguentado nas chamas do aquecedor da casa e lavou as manchas de sangue da
luva numa pia.
Subiu então de volta para sala, sentou-se
por um tempo numa poltrona. O olhar perdido no vazio da sala sombriamente
iluminada por algumas velas. Passou-se menos de dois minutos e logo subiu rumo
a seu quarto no andar superior.
Abrindo a porta do quarto mansamente a
passos de gato entrou no aposento. Passou a chave, tratou de tirar as vestes, e
deitou-se. Adormecendo logo como tomado
pelo sono dos justos.
Decorridos sete dias, novamente jantavam
reunidos os quatro irmãos. Reinava silêncio no ambiente da sala de jantar.
Juliano, o mordomo, que desde o
falecimento dos pais dos moços persistia como empregado da casa. De pé em
prontidão, atendeu a ordem de tirar a mesa assim que terminaram a refeição.
Passaram então os quatro para a sala de
estar, onde, as chamas das velas dourava o ambiente em trevas. Dimas o segundo
irmão abaixo de Norberto, tomou do isqueiro de mesa e ascendendo seu charuto,
dirigiu-se aos demais dizendo:
- Muito bem, boa noite, já estou de saída.
Ao que os demais consentiram sem nenhum comentário, a não ser Vitória a mais
nova que, num tom irônico e um sorriso enigmático disse: “Se encontrar alguma
jóia que me caia bem, eu não me importo de ser presenteada”.
Dimas sem dar resposta dirigiu-se para a
porta e desapareceu na noite escura.
Assim como Noberto, sete dias atrás, ele
também caminhou a passos lentos pela calçada. Olhou o relógio de bolso, já
caminhava a uns bons vinte minutos, quando ouviu passos vindos em sua direção.
Tornou-se mais vagaroso seu caminhar, e cruzou com ele um casal que na certa passeava
pela noite, ou ia rumo à alguma festa visto os trajes.
Dimas exclamou consigo próprio: “Maldição,
não poderia ser um só, tinha que tratar-se de dois!”. E prosseguiu em sua caminhada
lenta e compassada. Virou a primeira esquina e deu de ombros com um senhor já
com certa idade, este voltando-se para o rapaz, desculpou-se.
Mal os lábios do velho homem se fecharam em
suas palavras de desculpas, e um veio de sangue escorreu no canto dos lábios
contraídos. Dimas já o havia esfaqueado em cheio no ventre.
Tomadas as devidas precauções quanto aos
vestígios do crime, assim como o fizera o irmão. Deu as costas e rumou para o casarão.
A madrugada já avançava.
Assim como Norberto, Dimas também evitou ao
máximo qualquer barulho. Por sorte deparou-se com a lareira acesa, e ali mesmo
atirou o tecido manchado de sangue com o qual limpara sua faca. Em seguida virou-se de costas e quase morreu
de susto, deu de frente com Juliano que simplesmente lhe inquiriu:
- Deseja alguma coisa ainda esta noite
senhor?
- Não - foi a resposta de Dimas, suspirando
aliviado. Deu um cortês “boa noite” ao serviçal e subiu para seu quarto, após
depositar no cofre da parede da sala, um relógio e a carteira do velho que
assassinara. Despertou já tarde no dia seguinte.
Decorridos outros sete dias, mais uma vez
reunidos os quatro irmãos à mesa do jantar, desta vez foi Higor que pronunciou
a sua sentença de despedida e adentrou-se na escuridão da noite.
Nessa mesma noite sai logo atrás do irmão, Dimas em busca de um local onde comprar os
charutos sem os quais não passava. Caminhou distraído por longo tempo, chegou
mesmo a parar num local e tomar uma bebida antes de alcançar a tabacaria.
Comprados os charutos tomou a direção de volta para casa. Passou duas quadras e virou à direita dando de
frente com outro homem que vinha na
mesma direção dele com os olhos a
contemplar os próprios passos.
Ao se depararem este num ato súbito
finca-lhe no ventre uma faca. O assassino estremece e atônito queda ao chão e
debulhasse em lágrimas. Tratava-se de Higor que acabara de assassinar o próprio
irmão Dimas.
Envolvido num terror profundo, ainda assim
lhe volta o sangue frio e calculista dos homicidas e deduz de imediato consigo:
“devo ocultar o corpo em algum lugar, pois
meu irmão morto se descoberto seria a ruína de todos nós’’. Nisso principia a
arrastar o cadáver do irmão para um beco próximo onde dando graças
a Deus seria possível escondê-lo.
Em seguida segue para o casarão em busca de
participar aos demais o que se passara. Com a alma envolta em dor atravessou a
porta da casa e subiu as escadas. O peito arfava, parou por uns instantes para
em seguida principiar a despertar cada um dos dois irmãos em seus quartos. Por último
chamaria Juliano, o mordomo. Eles na certa em consenso saberiam o que deveria
ser feito.
Esperou Higor impaciente os irmãos na sala
de estar sob a penumbra das velas. Um a
um eles se reuniram assombrados com a atitude do rapaz. “O que poderia levá-lo
a tal procedimento?” Era o que indagavam consigo próprios.
Mais aflitos ainda ficaram quando este
atirou-se de costas para a parede e vertendo lágrimas pronunciou: - “O Dimas..
- Eu matei nosso irmão Dimas”.
O pânico apossou-se de todos e quase em
uníssono indagaram: -“O que houve, como sucedeu-se essa tragédia”,
acrescentando em seguida da mesma forma num mesmo palavreado: -“E o corpo? O
que fez do corpo?”.
- Está oculto num beco próximo ao local
onde deu-se o incidente – foram as palavras de Higor.
- Juliano trate de preparar-se para seguir
com Higor ao local. Trarão os dois o corpo de Dimas para nossa casa - foi a fala incisiva da irmã mais nova Vitória a dar a ordem.
- Eu e Norberto trataremos enquanto isso de
encontrar uma maneira de como livrarmo-nos do cadáver de nosso querido irmão. –
Vamos apressem-se.
Juliano e Higor cumpriram as ordens de
Vitória.
Lançar o corpo do irmão nas chamas do aquecedor
do porão foi a solução encontrada por Norberto e Vitória. Isso se daria ainda
aquela noite quando regressassem com o cadáver.
E juntos, Vitória e Norberto, começaram a
contar o tempo que batia cadenciado no relógio de pêndulo num dos cantos da
sala.
- Meu Deus, como faremos isso Vitória? Na
certa haveremos inclusive de esquartejar o corpo de Dimas para lançar os
pedaços no pequeno forno do porão que nos serve de aquecedor na casa.
- Juliano que trate dessa parte, o que mais
podemos fazer? Ou tem você ideia melhor? – retrucou a moça.
O silêncio estabeleceu-se no ambiente e
impacientes aguardavam, sem poder um cruzar o olhar do outro . Omissos em
qualquer emoção ou possibilidade de pânico.
Enquanto isso, Juliano e Higor, que munidos
de uma lona que o mordomo providenciara carregavam o corpo por caminhos ocultos
pelas vielas próximas. Foram então repentinamente surpreendidos por dois cães
que ladrando os assombram e encurralam.
Sem
poder avançar na caminhada ambos já exaustos pelo peso do corpo de Dimas não
dão conta de vencer a fúria dos dois cães que avançam e fincando os dentes na
lona desvencilham dela o defunto.
Ao farejarem o sangue mais impossível
tornam ainda a marcha e os dois homens veem-se indecisos, se fogem ou enfrentam
os animais. Correm então em estado de desespero os dois num mesmo rumo aos
atropelos. Não percorreram um caminho muito longo quando repentinamente Juliano
aos tropeços leva uma queda e cai estirado de costas no chão. Higor pára em sua
fuga e se dá conta que o outro ficara para trás. Volta-se e vê Juliano caído de
costas. Aproxima-se e para seu espanto, sangue escorria da cabeça deste. Chacoalhou
o corpo e estarrecido percebe que o mordomo já não respira. Havia batido com a
cabeça numa pedra com a queda. E o ferimento profundo o matou.
Maior
então é a aflição que se apossa do rapaz. “Santo Deus e agora que farei?” Indaga
ele de si no silêncio da noite. Toma o
caminho de volta para o local onde ficaram os cães e o corpo do irmão.
Ao chegar ao local um terceiro cão já se
unira aos outros dois e na certa esfomeados que se encontravam, já devoravam o
corpo frio de Dimas. Higor tomado por fúria começa a jogar pedras nos animais
procurando afugentá-los. Jamais deveria
ter tido tal atitude, pois enraivecidos os três cães partem para cima dele, que
busca fugir, desta vez indo rumo a uma estreita ponte por sobre um riacho por
sinal de altura considerável. Mal deu cinco passos por sobre o abismo os cães o
alcançam e atacam ferozmente. O rapaz desequilibra-se e vê-se lançado
precipício abaixo. Esse foi seu final.
Enquanto isso no casarão, Norberto e
Vitória, impacientes com a demora dos outros dois, ora caminham pela sala, ora
sentam-se com o olhar perdido na penumbra das velas. O tempo foi passando e
quando menos se deram conta o claro do dia invadia o ambiente.
Vitória então, como sempre incisiva em
suas atitudes, dirigi-se a ir Noberto e diz:
- Bem já sei comigo que algo de trágico se
deu. Não demorariam até o dia amanhecer caso tudo tivesse ocorrido a contendo.
Sabemos o que temos de fazer.
Dirige-se ela ao cofre por detrás do quadro
na sala , destrava-o e toma de um frasco com um líquido. Norberto sente o
sangue gelar, sabia perfeitamente o que continha aquele frasco.
Ele e a irmã, bem como os outros irmãos,
nunca imaginaram que fosse necessário chegar aquele extremo. Possuíam sim
aquele veneno, mas jamais cogitaram a possibilidade de que seria algum dia
útil.
Norberto então toma de dois copos de uma
mesa onde havia algumas garrafas de bebidas, despeja em cada um deles certa quantidade e pousa os copos na mesa de centro da sala de
estar. Virginia despeja neles praticamente em parcelas iguais o conteúdo do frasco.
Em seguida os dois irmãos sem dar-se conta unem as mãos numa atitude comovente
na certa, tomados de emoção jamais vinda até eles. Emborcam os copos e entornam
o conteúdo em poucos goles, num lapso caem mortos ambos estendidos no tapete da
sala já iluminada pelos raios de sol da manhã.
FIM